Um ponteiro-direito que jogava por música

Walmir Rosário*

Não tem que não tenha conhecido Lane, ponteiro-direito da Associação, Janízaros e Flamengo de Itabuna, nos anos 1950. Ponteiro de muitas firulas e que gostava de fazer gols, todos comemorados com muito estilo e alegria. Marcar Lane era um suplício para os zagueiros, devido ao seu estilo brincalhão, mas que conduzia a bola com seriedade em direção ao gol.

Se tinham algumas pessoas que não gostavam de Lane eram justamente os zagueiros, o que ele considerava “jogadores de categoria inferior” – isso os dos times adversários, de sua equipe, não –, que só sabiam entrar no atacante para bater, machucar. E isso Lane detestava. Já imaginou receber uma falta e cair no campo molhado, sujar o calção? Nem pensar! Receber uma pancada na perna e baixar o meião…para ele essa era uma atitude inconcebível.

Os torcedores que tiveram a felicidade de presenciar Lane jogando uma partida são capazes de testemunhar a elegância com que entrava em campo e como saía, isso quando os zagueiros deixavam. Os roupeiros dos times por onde passou é que não gostavam muito das exigências de Lane em só receber o uniforme bem passado e engomado. Dizem, até, que, ao ser contratado pelo clube, impunha ser o seu uniforme lavado e passado com todo o esmero por um conhecido profissional da pedra do Rio Cachoeira de nome João Brotinho, com fama aqui e em Itajuípe. Só assim ele entrava em campo.

Arlindo Monteiro Orrico era seu nome de batismo e certidão nascimento lavrada no cartório de Santo Antônio de Jesus, sua terra natal. Casado com dona Maria Isabel, com quem teve 12 filhos, viveu até os 83 anos, sempre esbanjando alegria por onde passava, brincando com os amigos, mesmo quando a situação lhe era adversa.

Chapista (funileiro, que conserta lataria de carros) de profissão, futebolista de primeira e músico da Filarmônica Euterpe Itabunense, a fama de Lane ultrapassava os limites do bairro Conceição, onde residia, e ia além das fronteiras de Itabuna. Um fim de semana sem festa e sem futebol era coisa que ele não admitia e fazia questão de não deixar passar isso em branco.

Os dias de sábado eram reservados para as festas, fosse tocando “caixa” na briosa Euterpe, onde desfilava com farda engalana, ou nas muitas orquestras e bandas em que exerceu a função de baterista. Como fazia no futebol, na bateria ele não deixava por menos: atraía toda a atenção para si, realizando movimentos dignos de um malabarista.

Histórias e estórias

Bater nos pratos e caixas de percussão com braços trocados era o que mais gostava. Dizem, até, que alguns músicos sem essas habilidades peculiares não gostavam de tocar junto com Lane, pois se sentiam menosprezados pela quantidade de aplausos dirigidos ao baterista. Restrições à parte, a plateia sempre vinha ao delírio nas noites mais inspiradas.

Contam os amigos mais chegados – com os quais dividia mesas nos muitos bares da cidade –, que certa feita, ao tocar numa conceituada orquestra itabunense, Lane resolveu embalar a festa. Lá pelas três horas da manhã, abandonou seu instrumento de trabalho – a bateria – e decidiu assumir o posto de crooner, imitando o astro americano Ray Charles.

Enquanto cantava, os assistentes da plateia, já devidamente embalados com o consumo de rabos de galo, sambas em Berlim, Ron Merino, cervejas e outras iguarias etílicas, começaram a jogar bolas de papel em sua direção. Com a elegância de sempre, Lane resolveu usar seus dotes futebolísticos e, com maestria, cabeceava cada bolinha de papel atirada em sua direção.

De repente, o violonista ao seu lado percebe o sangue jorrando da testa de Lane, que manchava o seu smoking. A orquestra para a música e seus colegas correm em sua direção para prestar socorro, temendo ser algum problema fatal, até descobrirem que não passava de um corte superficial. E foi o próprio Lane quem explicou:

– Eu fui cabeceando, cabeceando as bolas de papel, até que jogaram uma taça…e aí não teve outro jeito – confessou.

Numa outra feita, Lane voltava para casa depois de mais uma noitada tocando num dos muitos clubes de Itabuna. Naquela época, dois eram os caminhos obrigatórios para se chegar ao bairro Conceição: a ponte do Tororó – por muitos também chamada de “ponte dos velhacos” – e a ponte velha, batizada de Miguel Calmon, local preferido pelos “amigos do alheio” daquela época para esperar os incautos escondidos nas guarda-vidas (recuos), um local perfeito para a tocaia.

E eis que surge Lane no início da ponte, caminhando despreocupadamente, até que, a chegar no meio, dois indivíduos surgem do guarda-vidas e anunciam o assalto.

Com o susto, Lane se desequilibrou e caiu, apoiando-se no chão para não sujar o terno de linho Branco S 120, todo engomado. Surpreso com a atitude da vítima, os dois ladrões se assustaram e disseram um pro outro:

– Vamos cair fora que o velho é capoeirista! – e saíram em debandada.

Lane não se fez de rogado, levantou, sacudiu a poeira das mãos e continuou seu caminho para chegar em casa.

*Radialista, jornalista e advogado