Tratamento com injeções de vírus zika destrói tumor cerebral sem causar lesão neurológica

É o que aponta estudo da USP, que até o momento só está sendo realizado em camundongos com tumores no cérebro

Uma pesquisa realizada no Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que a aplicação sistêmica de três injeções com vírus zika em camundongos com tumores no cérebro é capaz de destruir o câncer sem provocar lesões neurológicas ou em outros órgãos, aumentando a sobrevida dos animais.

Os cientistas também injetaram o zika em um órgão semelhante ao cérebro humano criado in vitro com células-tronco, chamado organoide cerebral, e detectaram que o vírus impediu a progressão do tumor, chegando a reduzi-lo.

Nos dois modelos – em animais e in vitro –, após o tratamento, as citocinas (proteínas que regulam a resposta imunológica) suprimiram a progressão do tumor e houve aumento da migração de células de defesa para o cérebro afetado pelo câncer, acordando o sistema imunológico para a existência do tumor.

Esses resultados, publicados em edição especial da revista científica Viruses, confirmaram a eficácia e a segurança do tratamento com zika nos modelos, abrindo perspectivas para o uso da viroterapia em tumores do sistema nervoso central. No Brasil, foram registrados no ano passado cerca de 11 mil novos casos da doença, sendo aproximadamente 5.200 em mulheres, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca).

“Um dos pontos importantes, e que confirma pesquisas anteriores, foi o recrutamento do sistema imune, dando uma boa resposta à terapia. As duas vias de ação do vírus são muito importantes, pois podem permitir que ele atue em um número maior de tumores do que achávamos inicialmente”, afirma Mayana Zatz, professora do Instituto de Biociências (IB) da USP e coordenadora do CEGH-CEL – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP.

Zatz foi orientadora do artigo, juntamente com a pesquisadora Carolini Kaid, bolsista da FAPESP, e do professor Oswaldo Keith Okamoto, do IB-USP.

Cientistas do centro já haviam demonstrado a capacidade do zika de infectar e destruir células de tumores do sistema nervoso central em estudo feito com camundongos, divulgado em 2018, e com cachorros, publicado em 2020 (leia mais aqui).

O grupo também foi o primeiro a descobrir que o zika brasileiro pode ser um agente eficiente para tratar formas agressivas de tumores embrionários do sistema nervoso central, incluindo meduloblastoma. As terapias disponíveis atualmente para esses tumores pediátricos são de baixa eficiência e causam efeitos adversos graves, afetando a qualidade de vida dos pacientes.

Agora, os pesquisadores apontaram a segurança e a eficácia da técnica. “Para qualquer tentativa de tratamento, é preciso saber a dosagem e a via de administração. Mostramos nesse trabalho que três doses de injeções sistêmicas intraperitoneais do zika, com intervalo de sete dias, apresentaram resultados promissores nos modelos”, disse Raiane Ferreira, bolsista de doutorado da FAPESP e primeira autora do artigo.

A FAPESP ainda apoiou o trabalho por meio da bolsa do pesquisador Rodolfo Sanches Ferreira.

Entre o final de 2015 e 2016, o Brasil passou por uma epidemia de zika, ficando, à época, entre os países com o maior número de casos da doença. Em parte, a explicação está ligada à presença do vetor de transmissão do vírus, o mosquito Aedes aegypti, que também transmite a dengue.

Apesar de a infecção por zika geralmente ser assintomática, pesquisas mostraram a ligação entre a doença e o desenvolvimento de síndromes neurológicas em adultos, como a de Guillain-Barré, e malformações congênitas em recém-nascidos, como a microcefalia.

O país registrou um número significativo de mulheres infectadas por zika que tiveram bebês com síndrome congênita, principalmente em Estados do Nordeste. Entre 2015 e 2020, nasceram 3.423 crianças com síndrome congênita associada ao vírus, segundo dados do Ministério da Saúde.

Zatz conta que esteve na região Nordeste, onde colheu material genético logo no início dos trabalhos do grupo. “Na formação do cérebro há células neuroprogenitoras. Coletamos amostras de gêmeos discordantes, em que um teve microcefalia e o outro não. No laboratório, fizemos linhagens dessas células neuroprogenitoras e infectamos com zika para entender como o vírus atuava. Daí surgiu a ideia de testar em tumores cerebrais, ricos nesse tipo de células.”

O estudo

Os pesquisadores trabalharam com camundongos imunodeficientes, uma linhagem conhecida como “nude”, ou seja, eles têm um sistema imunológico inibido por apresentar um número reduzido de linfócitos T. A carga viral utilizada foi de 2 mil partículas de zika para cada dose (2000 PFU / ZIKVBR).

Para avaliar a segurança do tratamento, primeiro foi testada a aplicação do vírus diretamente no cérebro dos animais já com tumor. O efeito foi positivo, mas depois de 21 dias o câncer voltou a crescer.

Também foram feitas injeções intracerebrais ventriculares (ICV) em animais infectados com a mesma carga viral, mas estas se mostraram muito agressivas e virulentas. Houve perda de peso significativa e sobrevida de até quatro semanas após a administração do zika, enquanto o grupo-controle permaneceu vivo e sem alterações clínicas.

Os cientistas realizaram então aplicações sistêmicas via intraperitoneal, com as três doses e o mesmo intervalo de tempo, obtendo efeitos positivos – os animais continuaram comendo, não perderam peso e mantiveram boas condições clínicas.

Em um experimento feito para analisar o tropismo do zika – se ele se direcionaria diretamente para o cérebro ou para o tumor –, os cientistas injetaram o tumor na região da coxa (flanco) dos camundongos e observaram que o vírus não atuou nele. Nenhuma remissão tumoral foi observada em ambos os grupos, sugerindo que o tropismo do zika é de fato direcionado ao sistema nervoso central.

“Depois que conseguimos detectar a segurança e que o tropismo era para o cérebro, começamos as três injeções intraperitoneais do zika a cada sete dias e acompanhamos”, explica Ferreira.

Quando o tumor foi localizado no cérebro dos camundongos, injeções sistêmicas em série apresentaram destruição tumoral eficiente, sem lesão neurológica ou de outro órgão e aumentaram a sobrevida dos animais.

No caso dos organoides cerebrais, eles foram desenvolvidos em estágio inicial (26 dias) e infectados também com 2 mil partículas de zika sete dias após a adição de células de tumor. As células tumorais rapidamente se ligaram e começaram a se espalhar nos organoides após uma semana.

O resultado foi que a infecção provocada pelo vírus nas células tumorais prejudicou a progressão da doença, indicando efeito oncolítico intensivo de zika. Pela primeira vez, o grupo trabalhou com tumores embrionários do sistema nervoso central in vitro, com resultados semelhantes. O artigo, no entanto, destaca a necessidade de mais investigação para confirmar a seletividade do vírus nesses casos.

Nova fase

Segundo Zatz, agora começa uma nova fase do estudo, com o recrutamento de cães acometidos por tumores cerebrais. A proposta é trabalhar com animais de raças e tamanhos diferentes.

“Os cães são modelos extremamente importantes antes de pensarmos em testar em pacientes, pois têm tumores muito semelhantes aos seres humanos e sistema imunológico preservado. Será possível analisar tumores diferentes”, completa a professora.

Os pesquisadores criaram um site com mais informações sobre essa nova etapa, que pode ser acessado em https://genomazikaetumor.ib.usp.br/.

Por Luciana Constantino, da Agência Fapesp
Foto: Acervo dos Pesquisadores