Por Walmir Rosário*
Acordei às 5 da manhã desta terça-feira (8) com o espocar de fogos, o que não é nenhuma novidade aqui nesta Canavieiras de São Boaventura, acostumada à pirotecnia para comemorar de tudo, ou até mesmo nada. Olhos ainda entreabertos, perguntei à minha mulher em que dia estávamos, com a simples finalidade de tentar descobrir o que comemorávamos, uma data festiva, uma data religiosa, enfim, o porquê dos fogos.
Dia 8 de dezembro. Imediatamente passou um filme pela minha cabeça, quando ainda na juventude acordava de madrugada e me preparava para a comemoração de nossa Santa Padroeira, Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Era um tempo próspero para o bairro da Conceição, em Itabuna, em virtude da chegada dos frades capuchinhos – freis Isaías, Justo e Apolônio – com a missão de construir uma igreja em sua homenagem.
Quando disse tempo próspero, não me enganei. O propósito de transformar uma simples capelinha de madeira em uma grande igreja era um desafio a ser vencido pelos capuchinhos e a singela comunidade. Aos poucos passamos a conviver com os três religiosos como se fossem de nossas famílias, dada a integração e o jeitinho de pedir todos os tipos de colaboração para a concretização da obra.
Para nós meninos – dos sete, oito, 10 anos – acompanhar as obras e as funções religiosas era uma vida nova, uma atividade bem diferente, a qual complementava o período de estudos, os jogos de futebol, gude e todos os tipos de brincadeiras. Passamos a conviver com operários de outros lugares, ávidos – como nós – a ouvir e contar histórias, muitas delas vindas do nosso imaginário. Creio que deles também.
Com mais pessoas circulando, o nem tão acanhado comércio do bairro passou a vender mais e a cada momento chegava um caminhão com pedra, areia, cimento, tijolos e até um bate-estaca, equipamento nunca visto por nós. Admirávamos o operador a manejar aquela máquina, subindo e descendo aquele enorme cilindro para cavar os fundos buracos onde seriam levantadas as potentes colunas.
Nas horas vagas, ajudávamos a carregar material de construção [não era crime o trabalho infantil, mesmo voluntário], conversávamos com os frades que nos cobravam bons resultados nas aulas de catecismo ministrada pela professora Maria Zélia e prometia lugar nas funções religiosas na atividade de coroinha. Fui o primeiro a vestir a batina branca com gola e faixa azuis de coroinha – cores de Nossa Senhora da Conceição. Uma glória!
Após alguns anos, Igreja Matriz pronta e inaugurada, nossa autoestima nas nuvens, nos igualávamos com os moradores de outros bairros e do centro da cidade, pois já gozávamos de privilégios tais como uma igreja, ruas calçadas com paralelepípedos e até água encanada em algumas ruas. Com a igreja pronta, os frades iniciaram a construção de um grande colégio. Passamos a nos sentir itabunenses de verdade.
Àquela época convivíamos harmonicamente com os “crentes” de todas as denominações, isso após ver o bom relacionamento entre os frades e os pastores. E foram frei Justo, frei Isaías e frei Apolônio os incentivadores sociais da comunidade. Durante a novena em homenagem à Nossa Senhora da Imaculada Conceição, as barraquinhas com quermesses, bingos, comidas e bebidas típicas (doadas) reunia toda a comunidade.
E com nossa vida religiosa em alta, as vocações sacerdotais afloravam e, mais uma vez, fui o primeiro a ir para o seminário. Primeiro, Vitória da Conquista, em seguida, Feira de Santana, nas quais recebi educação escolar, moral e religiosa exemplar. Aos poucos vou recebendo os amigos de infância no seminário, não sei se por vocação ou por terem se inebriado com minhas visitas a Itabuna vestido com a batina de São Francisco.
Brincadeiras à parte, os frades capuchinhos foram responsáveis diretos pela transformação do bairro da Conceição, uma localidade acanhada e jocosamente chamada de Abissínia (em alusão ao país africano – Etiópia – em guerra), para um bairro charmoso e próspero. A igreja continua lá, altaneira, com seus ministros religiosos pregando a paz entre os povos.
Entretanto, este ano a Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição não pode realizar, como sempre fez, a festa em homenagem à Padroeira devido à pandemia da Covid-19. Se por um lado perde a convivência social, quem sabe do religioso contribui para o fortalecimento dos laços afetivos entre os moradores e fiéis, tão necessário nesses tempos difíceis, mas superáveis.
Desde o despertar em Canavieiras – com a alvorada de fogos – que assisto ao filme da minha vida, lembrando da infância, dos amigos presentes e os que se foram, sempre rogando por uma vida melhor. Não podemos mudar o rumo da vida, mas sempre é bom pedir a proteção de Nossa Senhora da Imaculada Conceição e as bênçãos do seu filho para atravessarmos os perigos deste mundo. Mesmo sem festa, vamos vivendo.
*Radialista, jornalista e advogado