Memória do cacau de Canavieiras preservada numa caderneta

Por Walmir Rosário

Um verdadeiro tesouro guardado num baú por anos consecutivos revela uma história surpreendente da economia cacaueira durante quase duas décadas, entre os anos de 1930 e 1940, na Terra Mater do Cacau – Canavieiras. O tesouro, na realidade uma caderneta na qual Arnaldo Pinto Melo anotava entradas e saídas de todo o cacau produzido no município e exportado.

Novo Documento 2019-02-07 11.25.18

Os mais velhos que ainda moram em Canavieiras conhecem muito bem e devem ter saudades das embarcações que aportavam aqui no rio Pardo para trazer passageiros e mercadorias para o comércio. No retorno à Bahia, como era chamada comumente Salvador, a capital do estado, levavam toneladas de cacau, que aqui chegavam no lombo dos burros das muitas tropas e nas grandes canoas.

Tomei conhecimento da caderneta do senhor Arnaldo Pinto Melo pelo seu filho Antônio Augusto Chaves Melo (Guga), entre uns goles de cachaça e cerveja na Confraria d’O Berimbau, e me interessei pelo assunto. Afinal, muito já disse da história da cacauicultura baiana, cujo berço é Canavieiras, justamente a fazenda Cubículo, às margens do rio Pardo, local onde tudo começou, então, nada melhor do que dar continuidade à história.

Mas quem era e o que fazia Arnaldo Pinto Melo em Canavieiras e qual o seu interesse pela produção e exportação de cacau da Princesinha do Sul, a ponto de deixar tudo registrado para a posteridade? De início, dá pra vislumbrar um homem organizado com suas atividades comerciais, anotando tudo, não só da empresa em que trabalhava, como também das concorrentes.

Arnaldo Pinto Melo era um português que deixou a velha Europa veio fazer o novo “Brasil” junto com outros diversos patrícios. Entre eles, no navio em que viajou estavam Carlos Corrêa Ribeiro e Manoel Joaquim de Carvalho, dois dos que se tornaram grandes empresários e compradores de cacau. Arnaldo veio para Itabuna para abrir a filial de Corrêa Ribeiro, de onde se transferiu para Canavieiras com a mesma missão e por aqui ficou. Muitos anos depois, transferiu-se para trabalhar com Manoel Joaquim de Carvalho, também em Canavieiras.

As navegações

Somente para relembrar, por aqui navegavam comercialmente os Hiates (sic) Itiberê, Monte Pascoal, Canavieiras, São Cristóvão, Itapicuru, Itabuna, 2 de Julho, Empreza (sic), Oceano, Campeão, Suissa, Macahé (sic), Porto Seguro e Belmonte. Os vapores Cannavieiras (sic), Ilheos, Marahu, além das barcaças Santarém, Diva, Camamú (sic), Marinete, Brasil e Itamaracá, e os barcos Conceição, Colibri e Estrela do Dia.

Essas embarcações, dentre outras, transportavam a produção de cacau da região para Salvador e era uma garantia de emprego e renda para os estivadores e outros trabalhadores do porto. Se na área rural o cacau era a principal matriz econômica, o comércio e os serviços representavam a crescente economia canavieirense, já denominada de a Princesinha do Sul.

Se para exportar o cacau eram necessárias as embarcações com calado suportado pela barra do rio Pardo, para fazê-lo chegar à cidade as embarcações eram menores e que requeriam esforço humano maior. Eram as famosas canoas, a exemplo da Baleia, com capacidade de transportar até 280 sacos de cacau, movida quase que 100% pela tração humana, algumas com velas e a ajuda da correnteza rio abaixo.

Àquela época também eram famosas as tropas que traziam cacau e outras mercadorias das redondezas e até de Minas Gerais, por caminhos íngremes e perigosos, haja vista as constantes guerras com os indígenas e quadrilha de malfeitores. Transportavam grandes valores em moeda corrente para pagar as mercadorias que lá compravam, bem como traziam o resultado das vendas das mercadorias pra lá enviadas.

A caderneta de Arnaldo

Na histórica caderneta de Arnaldo Mello as anotações se iniciaram na safra de 1934-35, com as saídas de cacau (exportações), que somavam 130 mil sacos com 60 quilos, compradas pelas diversas empresas aqui instaladas. Rapold, Manz & Cia, 50.582 sacos; Instituto de Cacau da Bahia, 45.850 sacos; Corrêa Ribeiro & Cia, 17.297 sacos; Tude, Irmãos & Cia, 14.234 sacos; e diversos, 2.037 sacos.

Já na safra seguinte, a de 1935-36, a produção alcançou um ligeiro aumento, com a exportação de 136.276 sacos. Ainda nesta safra houve uma troca de posições das empresas. Rapold, Manz e Cia, 50.778 sacos; Instituto de Cacau da Bahia, 33.748 sacos (queda); Tude, Irmãos & Cia, 26.793 arrobas; Corrêa Ribeiro, 23.457 arrobas; e diversas empresas, 1.500 sacos.

Já na safra de 1936-37, aparecem novas empresas compradoras de cacau, a exemplo da Wildberg & Cia – que comprou 45 mil sacas; Samuel Benjamim Assunção – com a participação de 251 sacos; e Companhia Agrícola Cacaueira – com compras de 2.250 sacos. As tradicionais empresas como Corrêa Ribeiro – 25.273 sacos; e Tude, Irmãos & Cia. – 24 mil sacos, e diversos 126 sacos, mantiveram seu mercado.

A safra de 1937-38 a produção voltou a crescer, alcançando 154 mil sacos. A safra seguinte, 1938-39, manteve o período de bonança e a produção bateu o recorde, chegando a 169.163 sacos. Na safra seguinte, 1939-40, um decréscimo na produção de cacau, cuja colheita foi de apenas 150. 667 sacos. Essa queda na produção também foi verificada na safra 1940-41 – 148.395 sacos comprados.

Apesar de não citar os motivos das altas e baixas na produção do cacau, as anotações de Arnaldo Pinto Melo se torna um documento de valor histórico, haja vista que contabiliza todos os embarques de cacau. E as anotações contemplam a data, a quantidade e a embarcação que transporta o produto, além de registrar o empilhamento e o exportador do produto.

Outro registro que merece ser ressaltado são as compras e embarques feitos pela empresa Manoel Joaquim de Carvalho & Cia Ltda., referentes à safra de 1950-51. Na agência de Canavieiras foram comprados 6.326 sacos de cacau, na subagência de Jacarandá, 3450 sacos, na subagência de Mascote, 855 sacos, subagência local, 300 sacos e agência Canavieiras D. Viana, 15 sacos.

Além das grandes firmas exportadoras, a caderneta também evidencia os pequenos compradores e produtores de cacau, a exemplo de Scaldaferri, João Alfredo Castro, Leonídio, Augusto Minervino, Mercedes Lopes Bezerra, Antônio Barreto, Espólio José F. Ferreira, Pedro Borges e Carlos Dias da Costa. Em todas as anotações, a quantidade de cacau e a embarcação que transportou.

Terra Mater do cacau

Em 1746 Antonio Dias Ribeiro, da Bahia, recebeu algumas sementes do grupo Amelonado – Forastero – de um colonizador francês, Luiz Frederico Warneau, do Pará, e introduziu o cultivo na Bahia. O primeiro plantio nesse estado foi feito na fazenda Cubículo, às margens do rio Pardo, em Canavieiras. Aqui, o cacau se adaptou muito bem e o seu cultivo foi implantado em outros municípios.

E Canavieiras fez história com o cultivo do cacaueiro, experimentando uma nova fase áurea em sua economia. Com o passar dos anos, a cultura cacaueira se tornou a principal matriz econômica de Canavieiras, alavancando diversos setores da economia, a exemplo da navegação de cabotagem, o comércio e a mineração de diamantes, tornando-a uma das principais cidades da Bahia.