Por Walmir Rosário*
Há coisas que só acontecem com o Botafogo. Lembro-me bem do fato que vou narrar, mas não posso precisar o ano, embora saiba que foi na década de 1970. Afinal de contas, faz muitos anos que aconteceu no antigo campo da Desportiva itabunense esse fato inusitado. Numa das muitas tardes esportivas de domingo jogariam o Botafogo do bairro Conceição, presidido e dirigido tecnicamente Rodrigo Antônio dos Santos, e o Corinthians do “Fuminho”, hoje bairro São Caetano. Pode crer, o título é rigorosamente verdadeiro.
Como era de praxe, a rivalidade entre os times amadores era grande e se disputava uma bola perdida como um esfomeado avança num prato de feijão. Ainda mais quando os jogadores obedeciam à orientação do presidente e técnico Rodrigo, chamado “Rodrigo Bocão”, alcunha dada devido ao privilégio de possuir pulmões e cordas vocais da melhor qualidade, principalmente pela altura e tonalidade da voz, responsáveis por broncas homéricas em seus jogadores.
E nesse clima morno, o primeiro tempo terminou em zero a zero bem chocho, após um jogo “mordido”, em que as equipes não queriam se arriscar a tomar um contra-ataque fulminante. Afinal, o Botafogo era tido como um celeiro de craques, graças à percepção de Rodrigo, um expert nas artes gráficas dos velhos tempos dos tipos frios e das impressoras manuais e no esmero em descobrir talentos.
Pelo Botafogo passaram jogadores de primeira linha e que muitas glórias proporcionaram aos torcedores da “Abissínia” – nome pejorativo dado ao bairro Conceição pelos adversários. Podemos citar entre eles craques Pintadinho Alfaiate, Borba (Miquiu), João Bocar, Patuca, o macuquense João Calça Frouxa, Vanda, Aranha, Dal Broa, Dadinho, Bangu, Pedrinha e Mundeco, estes, uma versão grapiúna da dupla Pelé e Coutinho, pela facilidade de construir famosas tabelinhas, entre outros tantos que agora me falha a memória. Mas, mesmo assim, não menos importantes para a história do screth da estrela solitária, ou mais recentemente Tete, Alterivo, Jacaré, Beguinho, entre tantos outros.
A paixão de Rodrigo pelo seu Botafogo somente poderia ser comparada a que dedicava ao seu padroeiro, Santo Antônio, de quem era devoto fervoroso e promotor da maior novena já feita em louvor ao Santo, que se tem notícia em Itabuna. Dizem até os amigos mais chegados que nem mesmo os “santos” frades capuchinhos Frei Justo, Apolônio e Isaías marcavam qualquer evento religioso para aquela data, com receio da concorrência. Mas essa é outra história.
Toda a perspicácia de Rodrigo, entretanto, não foi suficiente para evitar um enorme – e talvez o maior – vexame em pleno campo da Desportiva, templo sagrado do futebol itabunense daquela época. Nem mesmo Santo Antônio foi capaz de acudi-lo numa situação daquela. Jogavam – como já disse –, o glorioso Botafogo de Rodrigo e o Corinthians, um jogo pra “pirão”, com poucos ataques de cada lado, mesmo assim por parte do alvinegro da Conceição.
Assim que o juiz apitou o fim do primeiro tempo, os times saíram de campo e se dirigiram aos vestiários – locais que servem não só para o merecido descanso dos jogadores, mas, também, para que recebam as broncas de praxe. Ainda mais se tratando de Rodrigo, cujas orientações dadas aos atletas eram ouvidas até na geral, localizada no outro lado do campo, graças à potência de sua voz.
Passados os 15 minutos regulamentares, e mais outros cinco de “cera”, os dois times voltam a campo e o juiz reinicia o tempo complementar da partida. Os times se estudam, com jogadas ensaiadas no meio de campo, todas preparadas no vestiário, alguns dribles, duas ou três bolas atrasadas para a defesa, até que surge o pior, quando um torcedor – no caso esse locutor que vos fala – do bairro Conceição pergunta a Rodrigo:
– Rodrigo, cadê Romualdo?
A resposta foi suficiente para o velho campo da desportiva vir abaixo com os gritos e impropérios de dirigidos por Rodrigo contra o goleiro Romualdo Cunha, que ainda descansava tranquilamente no vestiário, embora já transcorressem 10 minutos do segundo tempo. Nem mesmo os narradores altamente categorizados como Orlando Cardoso e Geraldo Santos (hoje Borges) tinham se apercebido da falta do goleiro do Botafogo.
Eis que passados dois ou três minutos de busca – talvez os mais longos da Desportiva – surge, enfim, Romualdo Cunha, ovacionado pelos seus torcedores e xingado pelos adversários. Time completo, jogo reiniciado, o Botafogo ganha mais uma: um a zero até aos 45 minutos do segundo tempo, com um gol de Danielzão, para descanso das cordas vocais de Rodrigo e a alegria da torcida botafoguense.
*Radialista, jornalista e advogado