A Assemae reuniu especialistas do setor de saneamento nesta quinta-feira, 22/10, para debater os fundamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pela entidade junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), na qual apresenta pedido de medida cautelar contra dispositivos da Lei 14.026/20, cujo texto desmonta a política federal de saneamento básico no Brasil. O seminário online reafirmou o histórico compromisso da Assemae pelo protagonismo dos serviços municipais de saneamento, com base na titularidade municipal e na gestão pública de qualidade.
Na ocasião, o presidente da Assemae e moderador do debate, Aparecido Hojaij, lamentou o teor impositivo da Lei 14.026/20 para a autonomia dos municípios, além de destacar que o texto aprovado transforma o saneamento básico em um balcão de negócios, excluindo a população pobre e marginalizada. “É o momento de unir forças para derrubar essa Lei autoritária. A Assemae, que sempre esteve à frente nesta luta, não se afastará de seus princípios para defender o saneamento público municipal”, afirmou.
O advogado e secretário executivo da Assemae, Francisco Lopes, recordou o histórico de atuação da entidade no processo de revisão do marco legal do saneamento, desde 2017, quando foram iniciadas as tratativas sobre o tema. Segundo ele, embora tenha contribuído em diversas audiências públicas, reuniões e também na elaboração de projetos de lei, as reivindicações da Assemae não foram atendidas. “Trata-se do abuso de poder do Governo Federal em face da autonomia dos municípios, sem que haja qualquer tipo de benefício aos serviços públicos do setor. Por isso, a ADI da Assemae foi elaborada para atender o dever estatutário da entidade, que é defender a manutenção da titularidade municipal e da gestão pública”, destacou.
Principais argumentos da ADI 6583
Responsável pela elaboração da ADI em parceria com a Assemae, o advogado Ivo Teixeira Gico Jr, que possui sólida formação nas áreas de Direito e Economia, apresentou os principais fundamentos técnicos que sustentam a ação. De acordo com ele, a petição tem como objetivo solicitar a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º, 3º, 5º, 7º, 9º, 11, 13 e 15, dentre outros por arrastamento, da Lei 14.026/2020.
Conforme esclareceu o advogado, o pedido da Assemae se justifica porque a nova legislação desrespeita diretamente a Constituição Federal Brasileira, com destaque para a extrapolação de competência da União, esvaziamento de competência municipal, abuso de poder econômico, intervenção federal sobre a autonomia municipal e violação ao Pacto Federativo (acesse a íntegra da ADI aqui).
Segundo Ivo Gico Jr., um dos principais problemas da Lei 14.026/20 é a imposição de uma única forma para delegar o serviço de saneamento. “Agora, só pode delegar serviço de saneamento básico por concessão, o que obviamente extrapola a competência da União, proibindo a gestão compartilhada dos serviços de saneamento por consórcio ou convênio, mediante autorização, o que na prática significa que a Lei rasgou o artigo 241 da Constituição Federal. A Lei, de forma equivocada, impôs um modelo único de privatização: ou o município presta sozinho o serviço ou, se ele decidir cooperar com qualquer município, vai ter que conceder o serviço. Essa imposição é claramente inconstitucional e, por isso, estamos confiantes com o êxito da ação”.
Debatedores alertam inconsistências da Lei 14.026/20
Os especialistas convidados para debater o tema foram unânimes em parabenizar a Assemae pela iniciativa de ajuizar a ADI 6583, elogiando os aspectos técnicos e objetivos que fundamentam a ação. Como representantes de entidades do setor de saneamento básico, os debatedores destacaram a coerência dos argumentos utilizados pela Assemae, o que contribui diretamente para ampliar o debate do segmento neste momento de luta.
O diretor Administrativo-Financeiro da Agência Reguladora ARES-PCJ e representante da Associação Brasileira de Agências de Regulação (ABAR), Carlos Roberto de Oliveira, parabenizou a profundidade técnica da petição da Assemae. Sobre o conteúdo da Lei, ele ressaltou que considera importante a padronização de normas de referência para a regulação dos serviços de saneamento, mas frisou que a atuação da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) deve ocorrer dentro do limite de diretrizes. “Não queremos uma ‘Super-ANA’, queremos apenas um modelo de supervisão regulatória para fazer a padronização das normas do setor. Além disso, é preciso pensar no ritmo de implementação dessas normas para que possamos ter uma discussão apropriada com a sociedade”, acrescentou.
De acordo com o coordenador geral do Observatório Nacional dos Direitos à Água (ONDAS), Marcos Helano Montenegro, a discussão jurídica de levar o tema até os tribunais é uma iniciativa importante, embora esse campo de atuação não seja suficiente. Segundo ele, também é fundamental reativar a articulação política das entidades do setor, buscando a disputa de narrativas nas ruas, jornais e mídias digitais. “Precisamos encontrar formas de romper a propaganda enganosa que foi feita para a aprovação dessa Lei no Congresso Nacional. É uma falácia dizer que a Lei vem para universalizar o saneamento no Brasil. Pelo contrário, ela vem para transformar a água em negócio e tornar mais difícil a universalização do setor”, completou.
Para o vice-presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES), Mario Cezar Guerino, a Lei 14.026/20 não é o caminho que levará à universalização do saneamento básico no Brasil, pois ela coloca em risco tudo aquilo já construído pelo setor até agora, além de ferir diretamente a autonomia dos municípios. “Essa Lei foi feita realmente para a universalização? A ABES acredita que não, exatamente porque ela desestrutura o setor de saneamento na medida em que afeta diretamente os pequenos municípios, já que não vão despertar o interesse da iniciativa privada. É uma lei claramente inconstitucional”, argumentou.
O assessor de Saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), Edson Aparecido da Silva, lamentou a insistência do Governo Federal em pautar a revisão do marco legal do saneamento nos últimos três anos, quando o correto seria focar o debate de soluções para apoiar os prestadores dos serviços de saneamento com base na legislação já existente, incluindo a criação de um programa nacional de revitalização dos serviços públicos e o fortalecimento dos mecanismos de controle social. “Mas o que o Governo faz agora é escancarar as portas do saneamento para o setor privado. Só que isso não vai significar a universalização do saneamento, na verdade, nós vamos ter três grandes problemas. O primeiro é que a tão propagada segurança jurídica não veio com essa Lei, por isso a série de ADIs já em andamento. Além disso, haverá o aumento da exclusão da população que não tem acesso aos serviços de saneamento e também o aumento significativo das tarifas”, alertou.
Participação do público
O seminário online foi acompanhado por internautas de diversas regiões do Brasil, incluindo diretores e técnicos de serviços municipais de saneamento, reguladores, sindicalistas, professores, estudantes e ambientalistas. Por meio da interação via chat do evento, o público também parabenizou a Assemae pela clareza e coerência dos argumentos utilizados na ADI 6583, reforçando que a iniciativa da entidade representa uma contribuição fundamental para subsidiar o atual debate do setor de saneamento básico.