Em meio a reaberturas e protocolos, chegamos à marca de 2 milhões de casos documentados de COVID-19 no Brasil, com pouco mais de 80 mil óbitos associados à doença. Esse número assustador representa apenas a ponta do iceberg – isto é o que confirmamos, sabemos que os números “reais” devem ser piores, e o dano colateral, por outros problemas de saúde e pelo lado social e financeiro, também fazem parte desse panorama. Conciliar as consequências da crise social e financeira com a da saúde é uma corda bamba das mais frouxas. Itabuna se encontra na casa dos 4 mil casos confirmados e da sua primeira centena de casos letais.
Ainda não “enjoamos” de falar sobre o novo coronavírus, afinal de contas, diferente do que muitos pensam, não é um problema resolvido, e seu impacto justifica todo o debate e quantidade de informação produzida. Já descobrimos muito, mas ainda sabemos pouco – conhecimento em ciência e saúde se constrói devagar e com o tempo, além de muito trabalho. As consequências de informações obtidas erroneamente ou mal interpretadas podem ser catastróficas.
Dentre os fatos repetidamente observados em todas as partes do mundo, está muito bem estabelecido que os pacientes com doenças cardiovasculares, independente da idade, são os de maior risco para uma forma mais grave da doença ao contraírem o vírus, inclusive com maior risco de morte. Sabemos também que os mais velhos e com mais doenças, sejam elas pulmonares, renais, metabólicas, cânceres, entre outros, também compartilham deste maior risco. Porém, de fato, nada se compara ao que se observa nos hipertensos e nos cardíacos. Diabetes e obesidade, embora sejam doenças metabólicas, andam de mãos dadas com as doenças cardiovasculares, e merecem uma menção especial.
É importante desfazer algumas conclusões erradas sobre este fato – isso não quer dizer que há maior ou menor risco de contaminação! O contato com o vírus não depende do perfil do indivíduo, o vírus não “escolhe” quem irá contaminar e é altamente contagioso, daí a importância das medidas de higiene, do uso de máscaras e do isolamento. Também não quer dizer que todos os cardíacos e hipertensos irão necessariamente ter uma forma grave, estamos falando de risco, não de certeza! No extremo oposto, temos pacientes jovens que não possuem doenças e sendo esperada uma forma leve, acabam infelizmente morrendo. Tentamos predizer o imprevisível, mas ainda assim precisamos de um norte, precisamos estar munidos destas informações. Ao contrair o vírus, em caso de desenvolver a doença, a maioria dos casos é leve, as estatísticas e estudos mostram isso, não há como fugir disso. Mas quando falamos de milhões de pessoas, aquele 1% se transforma em milhares. E o aumento nos leitos de internação e de UTI não acompanha a proporção da doença.
A busca pela vacina está a todo vapor, já temos 5 testes em fase dita final, mas que devem demorar até 2021. Outras 160 vacinas estão sendo pesquisadas também. Enquanto ela “não existe”, não temos outras armas para prevenção que não o isolamento social, o uso de máscaras e limpeza das mãos e das superfícies e ambientes. Infelizmente ainda temos que lidar com discussões por defesas equivocadas de medicações que supostamente funcionariam. Que fique bem claro – cloroquina não previne, não trata e não ameniza COVID-19. Não é opinião, nem posicionamento: é um fato científico. Não vamos demonizar a medicação, pois malária, lúpus e artrite reumatoide são doenças nas quais a medicação tem aplicação bem estabelecida. Ivermectina também não tem nenhuma comprovação, bem como azitromicina, até então. Remédios não são livres de complicações e efeitos indesejados, e os portadores de doença cardiovascular devem estar atentos para o risco de arritmias de algumas delas, sabidamente a cloroquina e a azitromicina.
Para uma medicação entrar no hall de medicações do SUS, ela passa por um processo de verificação dos estudos e seus resultados. O mesmo deveria ocorrer antes da distribuição da medicação e da adoção de protocolos infundados. Há uma luta constante para inclusão de diversas medicações caras que são comprovadamente benéficas para variadas doenças, porém continuam fora das medicações fornecidas. O mesmo critério e rigor não se aplica quando há política envolvida, e o interesse político parece estar, mais uma vez, acima de tudo. O sucateamento da saúde não é de agora, apenas ficou mais evidente.
A gestão em saúde deve priorizar medidas com alguma eficácia comprovada, e não abraçar a necessidade psicológica que temos de uma solução mágica e manipular a população. Estamos cansados de ver na última década centenas de notícias sobre macas entupindo os corredores de hospitais, sobre falta de materiais ou de pessoas que não conseguem atendimento. Enquanto os gestores não fazem adequadamente a parte deles, nós, como profissionais de saúde e como sociedade, não estamos livres da obrigação de fazer a nossa. Se queremos recuperar a nossa liberdade, precisamos respeitar este poderoso inimigo invisível, e não sermos, além de vítimas do vírus, vítimas dos nossos próprios atos.
Dr Anthony Medina, formado pela Escola Bahiana de Medicina, especialista em Clínica Médica pela USP e especializando em Cardiologia pelo Instituto do Coração da USP
Um artigo fantástico. Infelizmente muitos médicos brasileiros carecem desse pensamento que, embora banhada nas rédeas da ciência, não é muito adotada, sobretudo por influência política.