Por Anderson Eduardo Carvalho de Oliveira*
No último dia 07 de agosto, a Lei nº 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, completou 15 anos desde a sua promulgação. Grande conquista dos movimentos feministas brasileiros e considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a terceira melhor legislação do mundo no que diz respeito à violência de gênero, a Lei Maria da Penha é nosso principal instrumento normativo para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres, representando verdadeira mudança paradigmática no universo jurídico, uma vez que incluiu este grave problema social no rol de responsabilidades do Estado, além de sistematizar diversos instrumentos para o seu tratamento integral, que vão desde estratégias de prevenção até medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência, bem como o recrudescimento da punição de seus ofensores.
Como pesquisador no campo da violência contra as mulheres, precisamente da responsabilização de homens autores de violência, e acessando os lugares que minha prática profissional permitem, resolvi organizar um evento virtual alusivo aos 15 anos da Lei Maria da Penha, convidando outras colegas pesquisadoras que se dedicam à temática para, juntos, refletirmos sobre os avanços, os limites e as recentes mudanças observadas na legislação. O evento acabou por despertar o interesse da mídia local e aceitei o convite de um canal da TV aberta para a gravação de uma reportagem como estratégia de divulgação.
Na ocasião, precisei responder duas ou três questões sobre a importância da lei e os meios disponíveis para a realização de denúncias. Já era o esperado. No entanto, quando os equipamentos foram desligados e eu me despedia dos profissionais envolvidos na gravação, o cinegrafista resolve me interpelar: “doutor, eu entendo tudo que o senhor falou aí, mas por que não se criou ainda a Lei João da Penha?”
A pergunta veio acompanhada de um relato envolvendo um casal de vizinhos, mas que eu não fui capaz de processar para aqui descrever em minúcias. Confesso que já não tenho mais a mesma paciência de outrora para responder a esta questão e me perdia, diante daquela narrativa, enquanto respirava fundo e buscava formas de driblar minha impaciência (agravada pela fome, pois estávamos bem próximos da hora do almoço) para respondê-lo sem parecer rude.
Não era a primeira vez que me faziam aquela pergunta. Em verdade, não sou capaz de contabilizar quantas vezes já precisei respondê-la em sala de aula, em grupos de discussões nas redes sociais, com amigos e colegas de trabalho, sempre com algum desconforto. É que, para mim, a resposta é muito óbvia. No entanto, como disse Darcy Ribeiro em um escrito de 1986, o papel dos cientistas é mesmo lidar com o óbvio. Então, lá estava eu, mais uma vez, diante da missão.
Com a promulgação da Lei Maria da Penha, o discurso reproduzido pelo cinegrafista, claro que numa versão mais arrojada, não tardou a chegar na mais alta corte judicial brasileira. Foram diversos os questionamentos em relação à sua constitucionalidade, sob o argumento de que inaugurava um tratamento diferente com base no gênero, uma vez que aplicada apenas aos casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres, ferindo, nessa leitura, o princípio da igualdade trazido no artigo 5º da Constituição Federal.
Quem assim se posicionou parece ter esquecido que o princípio da igualdade pressupõe que as pessoas colocadas em situações desiguais sejam também tratadas de forma desigual. Conferir tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades. Esta é lição básica, ensinada desde os semestres iniciais do curso de Direito. E não há como negar que, ante um processo de socialização sexista, machista e misógino como é o experimentado em nossa sociedade, as mulheres são colocadas numa condição de extrema vulnerabilidade, expostas à toda sorte de violência, prioritariamente no âmbito doméstico, familiar ou nas suas relações íntimas de afeto, contextos específicos para a incidência da Lei Maria da Penha.
O Brasil é um país extremamente perigoso para as mulheres. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, somente em 2020, foram 1.350 casos de feminicídio, sendo que em 81,5% deles as mulheres foram assassinadas por seus companheiros ou ex-companheiros e em 8,3% por outros parentes. Ainda com base nesse levantamento, foram 230.160 registros de lesão corporal dolosa por violência doméstica feitos na Polícia Civil e mais de 694.131 ligações para a central telefônica da Polícia Militar, o equivalente a um chamado por minuto. Apenas no ano passado, as delegacias registraram 60.460 ocorrências de estupro e estupro de vulnerável. Na grande parte dos casos, as vítimas eram do sexo feminino (86,9%) e o autor algum conhecido seu (85,2%).
Uma pesquisa publicada pelo Instituto Patrícia Galvão, em outubro de 2020, mostrou que, embora 62% da população brasileira discorde do velho ditado de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, outros 27% concordam com ele. Esse percentual chega a 30% quando consideradas apenas as respostas dadas pelos homens, o que demonstra ainda ser forte a legitimidade ou, ao menos, a tolerância social para a violência doméstica e familiar contra as mulheres, o que por si só justifica a necessidade do tratamento desigual.
“Ah… mas também tem homem que apanha da mulher”. E quem falou que não? E quem disse que mulheres que atentarem contra a integridade física, psíquica, moral, sexual ou patrimonial de seus companheiros ou ex-companheiros ficarão impune? O fato da Lei Maria da Penha não se aplicar a tais casos não indica que elas estão isentas de responsabilização criminal. O tratamento diferenciado e, decerto, mais gravoso previsto pela Lei Maria da Penha nos casos em que a vítima é mulher se justifica e se impõe como ação afirmativa, como uma discriminação positiva, um reconhecimento à leniência com a qual o Estado brasileiro sempre tratou essas questões, contribuindo para um discurso de naturalização e banalização da violência contra as mulheres.
E sabe o que é curioso? Embora pesquisas sobre a vitimização de homens no contexto doméstico e familiar sejam incipientes no Brasil, alguns estudos no cenário internacional demonstram que, quando vitimizados, os homens tendem a não denunciar aos órgãos públicos ou mesmo buscar suporte de sua rede familiar e amigos. Em nome do compromisso firmado com as formas hegemônicas de exercício da masculinidade, vale a regra “seja homem e supere sozinho”. Do contrário, é certo ser alvo de “zoação”, ridicularização e subjulgamento.
Portanto, não é a legislação penal brasileira que desampara os homens, mas os nossos processos de socialização e de sociabilidade, pautados numa ordem de gênero patriarcal, que mostra sua face mais perversa contra as mulheres ao mesmo tempo em que aprisiona homens em estereótipos limitantes em nome da aquisição de determinados privilégios.
Assim, melhor do que clamar pela promulgação de uma Lei João da Penha é tomar consciência de nossa existência oprimida, questionando as práticas abusivas associadas ao exercício dessas masculinidades hegemônicas e, com isso, somar nossas vozes na luta por um sistema mais justo, igualitário, em que ações afirmativas não tenham mais razões para existir.